quinta-feira, 3 de maio de 2012

Tráfego

Interprenetrado, soou o gongo. O cheiro das luzes revirou a descotinuidade dos tijolos da calçada. Perdi o tato. Acusei-me de suplício, auto-flagelação de si mesmo. Tocaram os sinos, a mesma missa eu rezava todo dia. Nunca soube não ser eu. Foi-se a liquidez tempo, era meio dia, soavam oito mil buzinas duas oitavas acima. Perdi meu meio tom.

sábado, 28 de abril de 2012

Lacuna

Infinita clausura, Ulcera latejante Que revolve meus dias, Degradação perpétua Irremediável Fogo fátuo, Consome a meia vida Da pobre estrutura Orgânica, Discípulo lunar Das angústias incontáveis, Guia-me na trajetória Da anti-matéria Transforma-me No teu instrumento, Na tua curva anônima, No teu olhar cortante Alveja-me com tua cura, Despe-me das penas de fênix, Embebe-me na tua extrema unção, Atira me na chuva de raios laser. Pronuncia me como a voz Que se propaga na onda, Que cresce, enfraquece, E se acaba, Em ré menor.

domingo, 22 de abril de 2012

Contágio

Desesperadamente, morria nos olhos do homem de face silente, a esperança promíscua sobre a vida. Mirava atônito a expressão fúnebre da criança que carregava ao colo. As paredes de madeira lodosa comprimiam o ambiente, o ar encharcado, pesado, reforçava-lhe ainda mais a sensação de enjoo flamejante. Parecia descolar-se do tempo, dilatar a matéria, revolvia em rompante a angústia andrajosa que trazia colada ao corpo. Tudo era a contemplação da natureza extática.
Os mesmos olhos, a mesma boca, toda a mesma velha estrutura dominadora dos dias de juventude só que agora infinitamente ruminada pelo deslocar contínuo e irreversível do tempo. Uma enorme gama de conhecimento, apenas para que no limiar recaísse nos assuntos mais triviais do senso comum, no mesmo labirinto popular, sem a vantagem de poder contar com os livros de auto ajuda.
A imagem repugnara-o, desvencilhou-se do quadro à paços tortos, cambaleante prosseguiu esguio por entre a multidão. Vociferava, batia o pé, revolvia-se tentando sem sucesso romper cada uma de suas ligações celulares. Como era possível que uma simples imagem fosse capaz de inverter a ordem da enorme cadeia sucessória dos fatos, trazendo à tona meio século em cinquenta segundos? Dirigiu-se a chapelaria, agarrou sua mala, ajeitou-a nas costas desceu as escadas com pressa.
Deu de cara com a avenida principal. Os carros inertes no tráfego orgânico, seus joelhos doíam, suas costas latejavam e a barba começava a pinicar. Vinte e cinco anos e era velho.Eram seis da tarde e não acontecia nada, mas já não era o mesmo.
Via agora as rugas nas faces dos passantes, livrara-se do barulho insuportável da cidade e já não tinha pressa. Olhava fixamente para o chão, cada passo era um novo desafio, o medo da queda era constante, sempre fora. Nunca em toda sua vida pudera libertar-se dele, nem mesmo por um único segundo. Sempre o mesmo temor primordial que nos persegue, bebês, crianças, jovens, adultos, velhos. É sempre a queda, o grande pavor, a grande angústia que arrebata o homem infinitamente até nos piores pesadelos.
Enxergava o lodo nos prédios, o dia era cinzento, inexplicavelmente belo, e a garoa cobria os homens com seus guarda-chuvas. Atravessou a avenida aos solavancos, apoiando-se em sua bengala invisível. Caminhava disperso, agora já rapidamente, soltara-se de si e procurava alguma coisa que pudesse trazer a própria infância. Um parque, uma bola, um simples carrinho de rolimã.
Não se lembrava do trajeto para casa. Ruas carros e pessoas, todos idênticos. Atravessava cada metro envelhecendo na alternância dos pés, logo não poderia mais se suster e inevitavelmente se chocaria com o asfalto, mas nesse ponto, esquecera até do medo que tinha. A velhice lhe dava tudo, fechou os olhos e tocou o foda-se. Caminhou apressado, sentia o vento e o som da pianola do outro lado da rua que reproduzia Tristão e Isolda, era agora a libertinagem seu presente, sua razão, sua utopia.


Mal pode ouvir a buzina do carro que vinha ao seu encontro, senhor que era de si e do tempo. Sentiu leve o afagar do para-choque contra seu quadril, tropicou, voou, dançou lindamente no ar e se estatelou no meio da rua, não da principal, uma transversal, sem saída nem importância. O gosto férreo do sangue da boca era o veneno, o líquido pastoso que agora o conduzia delirante de volta a sala da pinacoteca.
Estava novamente parado em frente ao quadro. Imóvel, nunca até então havia estado ausente. Sua infância, sua juventude sua velhice. Era fruto e agente do mesmo meio inepto que conduzia cada transeunte. Sempre até então via-se claramente no começo e no fim das coisas, tudo para si era seu, mesmo as coisas mais impessoais, mais exógenas, exóticas, não eram mais do que parte daquilo que chamava de mundo.
Terminou atado a mesma pedra, com os olhos inexoravelmente voltados para frente à contemplar o quadro e a sombra dos passantes que se projetavam na parede sem ser capaz de compartilhar um segundo de sua violenta rapsódia. Desejava gritar, espernear, mas além de mudo, não conhecia nenhuma língua.

domingo, 15 de abril de 2012

Tamborilo

Ah! As luzes!
Ah! O Som!
Ah! Perfeita
irretidão de nulidade
última

Imóvel carrasco interminável,
Mata sua sede canibal,
do meu pescoço
Vampiro dos dias indeléveis

Enxuga teu rosto, cospe
Minha barba farta
De meias vidas

Semeia o centeio
Alucinógeno
Infante dessa
velha solidão
aborígene

Penetra com enfado
as rachaduras do asfalto
trazendo em verso
perfeita quebra da métrica
no opúsculo oculto
de Stravinsky

Rouba-me do medo,
Do abismo neutro,
Que seja a morte,
mas não o anonimato,
os pés arrastados da luz
do fim de mim.

Ah! Quanta ironia!
Ah! Quanto desapego!
Quanta prosa,
Quanto silêncio,
Pior de tudo,
É dizer tudo,
contudo,
dizendo nada

Ah! Que maçada!

sábado, 7 de abril de 2012

Ofício

Difícil,
ofício da poesia,
um vício,
retidão harmônica,
engalfinhada,
anônima,
demolidora da alma,
uma bomba relógio,
um míssil.

Sempre o mesmo
efeito,
descola o mundo,
destrói o tempo,
contradiz tudo,
para no final
devolver nulo,
o espírito,
vítima do sacrifício,
leve, etéreo,
bem longe do início.

domingo, 1 de abril de 2012

Solidão

A solidão é a janela
de onde se escuta
o barulho do fogo.

Não é estar só
ou acompanhado
é o "entre".

A perfeita inadequação
lógica, À natureza
imutável das coisas.

Um descompasso contínuo
que rompe o elo
do ser com o estar
relativizando o mundo.

E segue então na
inevitável trajetória
da inanição orgânica.

Algo tão sofisticado
e laico, quanto
qualquer outra
invenção moderna.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Minha primeira vez

Minha primeira vez foi numa cama, a excitação era tamanha que se manifestava fisicamente, o que muito me constrangia. Fui despindo-me, libertando-me de tudo que me prendia ao mundo real, de todas as convenções e adornos do cotidiano e só então, completamente nu, pude me engajar firmemente ao ato, meio que sem saber como e ciente do contraste entre a maturidade de meu companheiro estático e minha completa inexperiência. Deixei-me guiar, fui passivo, juntei-me ao turbilhão sinestésico que enlaçava as duas almas demasiado parecidas. Era algo imenso que me penetrava rasgando toda carne e entranha que encontrava no caminho. Me sentia absolutamente sem rumo, como podia ser possível que aquela enorme angústia que me invadia por trás me trouxesse tanto prazer? Como podia eu na minha fútil e sóbria existência ter me privado por tanto de experimentar tamanha sensação? Já não podia raciocinar e meus gestos resultavam automáticos. Entreguei-me completamente a emoção. Estremeci, agitei, suguei até a última gota de prazer. Engoli tudo como se fosse digesto e ainda por cima diante de tal assombro, explodi em puro gozo. Soube desde o primeiro momento que já não poderia viver mais sem aquilo, sem aquele contexto, aquela parceria. Soube que a partir daí seria obrigado a passar por aquela experiência todos os dias, todas as horas, em todos os lugares, em casa, no ônibus e até mesmo no meio da rua. E assim foi, desde então, há mais ou menos quatro anos, nunca mais pude deixar de ler Fernando Pessoa.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Captação

Capto luzes,
sirenes,
tambores

Decaptam homens,
idéias,
valores

Capitães,
covardes,
desamores,
saudam à
bala,
quem lhes
envia flores

Escutem às súplicas
tempestuosos
aurores,
dos que lhes mostram
sobre fortes dores,
que não é outro
esse tempo,
senão o de
horrores.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Impermeabilidade

Donde vem
o tecido
enigmático
que cobre
violentamente
minh'alma?

Donde nasce
a pele burguesa,
cirurgicamente
implantada sobre
a fraqueza
dessas veias
e tendões?

Donde brota
a barreira
intransponível
que separa
o eu do mundo,
o mundo de mim?

Donde jaz
a inquietação
fúnebre
que eleva o
espírito,
à mais completa
imoderação?

Parte ao acaso
do inferno orgânico,
da mão negra que
afaga o mundo,
da mais alta teoria
da alienação,
ou então,
simplesmente
da tarefa
falha
do convívio
mútuo?

domingo, 25 de março de 2012

Visão

Enxergar
é como perceber
um pequeno
feixe de luz
em meio
as turbulentas
águas
de um mar
infinito.

É sentir
profundamente
a pressão descomunal
que sufoca
e desintegra
cada membrana,
tecido ou célula
do corpo.

É ao mesmo tempo
uma ascensão
e um afogamento,
uma lufada de ar
seguida da enorme
agonia diante
da insuperável
debilidade
humana.

É por fim a morte
de todo referencial,
a eterna preocupação
do exercício,
um pouco como
qualquer outra paixão,
tão necessária
quanto letal.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Alegria

Pensando bem alegria é isso
Calores, sabores, aromas, domingo.

É um paladar instantâneo
que brota na alma
e some na mesma
epifania.

É a onda que arrebata
o espírito em forma de
cena onírica
e se vai.

É a forma que toma
o corpo, asilo, casúlo,
crisálida, vácuo.

É um tal movimento
que transforma
o instante seguinte
em único,agônico,
despreenchido.

"É uma tal Aleluia".

quarta-feira, 21 de março de 2012

Construto

Sou eu então o filho bastardo.
Fruto predileto,
herdeiro somático do impulso
primordial e magnético,
cadeia caóticas de letras "a"
grandes e pequenas,
randomicamente organizadas

Sou eu sim, tu,
tu mesmo, nós, vós, eles,
todos.
Emaranhado humano,
construto social,
multidão indivizível,
produto unitário.
Cem por cento conteúdo latente

Sou eu música,ritmo, harmonia,
sou eu som, clarinete, grunhido,
trepidar.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Fábrica

Piso frio,
algemas de cera,
és tão insólita
acomodada era
que no peito arde
tão longa espera,
mais animal
do que se fosse
fera.

E não há tal chama,
que por mais que tarde,
mostre na luz que
de fato ilumina
e no calor
que de fato arde,
que na alma provoque
algum alarde,
a mesma sombra
de pó, morfina,
que no homem morra
ainda que em parte.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Sally

Repentina paixão
me despertaste.
Teu olhar biônico,
teu ser reminescente,
teu sangue libertário.
Fez de mim o meu contrário,
entre a ficção e a realidade.
Nossos corpos, as taguagens,
tudo combinado,
é a perfeita harmonia do caos.
Visto então o vestido preto,
consciente de meu cárcere,
Celebro então o luto eterno
em um copo de vinho,tão seco
quanto o abismo que nos separa.
Olho atento os rabiscos no papel,
não tem forma ou métrica,
é você, simplesmente você
Nem mais, nem menos.
E talvez um pouco de mim.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Exangue

Ele percebia seu tom de perturbação pelo ritmo acelerado do movimento das pálpebras. Ela, sentada sobre o banco a meio sol, resgatava na memória as poucas cenas que então lhe eram permitidas. Tentavam remontar pacientemente o caminho traçado até o presente lugar, o banco, a mesa de pedra, sentados frente a frente, separados por um abismo. Era um jogo do silêncio, cada movimento, cada suspiro, significavam coisas novas completamente indecifráveis para o outro. Nove anos de convivência mutua e eram perfeitos estranhos.
- Vou embora, disse ele.
-Estou grávida, retrucou a moça.
As palavras soaram exangues, tudo era neutro. Estavam agora à cinqüenta mil quilômetros um do outro.
O samba ambiente do bar, os transeuntes em passos matinais, o ruído do rio distante soando como sussurro, formavam o cenário perfeito para a típica tragédia urbana.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Microconto pra você

Quieto, silencioso, inepto. Passou a manhã toda no mais completo isolamento de si mesmo. Ocupado com suas funções mecânicas , degustou rapidamente a porção padrão de comida. Voltando ao escritório, passou os olhos sobre o jornal sem entender mais do que duas palavras e tornou ao incessante trabalho exógeno. No fim da tarde, satisfeito com a sensação de dever cumprido, arrumou os papéis para o dia seguinte, inevitavelmente igual, atravessou o corredor da sala que dava para a rua e acenou com orgulho para a placa que dizia: Sorria, você tá sendo filmado. Permaneceu mudo o resto do dia.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Vlaminck

Cinza esvoaçante,
Branco firme.
Traços longos,
... Espatulados,
Solitários,
Sólidos

Resíduos finos,
Esponjosos,
Superfície plana,
Piramidal,
Preto cândido,
Tempestade,
Inverno

Paisagem –casa,
Casa- paisagem,
Carnaval de cores,
Mistura de tintas,
Pixels,
Pigmentos,
Sensações,
Silêncio.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Desperto

Desperto do espaço
no frio da noite,
na cama da lua,
no calor do mormaço

Desperto do sonho,
como o ás do entorno,
na reviravolta frenética,
livre da forma,
da harmonia,
ou de qualquer
outra estética,

Desperto do infinito
semblante triste,
da marejada face
cunhada em riste,
do brilho calmo
do desconforto,
da alma inerte,
do corpo morto.

Eternamente,
desperto,
da fome,
do medo,
da aurora,
um pouco do todo,
que fui,
desabrigado,
de outrora.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Cancro

"Qual face esconde então os designios, o caminhar, a situação? Qual mascara que vestes então sobre forma de mônada? Quais verdades escondes de ti mesmo em hábitos originalmente alheios? E se então ver-des, verdes os matos, vermelhos os sangues, azuis os céus e brancas as nuvens?
Roe então o teto de tua casa, amplamente desenhada, sob gotas cristalinas e mornas de suór, tua e te deus conterrâneos. Dissolvem-se assim os alicerces, em movimento quase mecânicos, daonde vem tal gangrena? Pois é idiopática, nasceu contigo, cresceu com o tempo, e inflamou com os vermes que agora te devoram. Qual remédio? Ruir, ruir, ruir.."

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Bandeira

E Bandeira
então seria
bandeirante
da poesia?

Desbravador
de versos,
homem frio,
anomalia,
da doença
padecia,
se não fosse
tal moléstia,
como então
que viveria?

Não sendo
refém dos
versos,
como elaboraria,
tão bonita
alegoria,
e se mesmo
assimo fosse,
o que
então seria,
criador,
criatura
ou cria?

sábado, 7 de janeiro de 2012

Retrô

Fixado o
crepúsculo
em versos
resta
pouco
que o
instante
não corte
ou deforme

Sendo tua
a invariavel
leveza
que anima
o momento,
busca em mim
a defesa,
a razão
tragédia,
o tédio
ou então
movimento

Sendo único
o desprezo
latente,
teus olhos
fuzilam-me.
Recorro as
palavras,
aos pontos,
as espadas

E em meu
amadorismo,
resta
o crivo,
o segundo
insólito
e destruidor
que na
inversão
da brisa,
com mil
ressalvas,
reatroagiu.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Dinamo

Verminosa,
me envolve
em tuas
raízes
de sílício

Mostra teu
véu de dama,
da noite,
tua broca,
inóqua

Me devora
com teus
espinhos
de cangaço,
arrebenta
cada artéria
com veneno
mortal

Me joga
contra o frio
do aço,
contra a ponta
da navalha,
minh'alma
que se esvai

Me encanta
no teu jogo
sedutor
de menina
desgraçada
ruminando-me
até que vire,
merda.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Manifesto

Nostalgicamente introspectivo. Fruto talvez do excesso de valor a um dia comum, da sensação de perda típica do final de ano que por mais falsa que seja arde na pele. Resolvi parar com a poesia, largar o prato de sopa rala, me livrar do duro pedaço de tecido humano que me prende e parar com os entorpecentes. Resolvi ao invés de fazer grandes planos e novas promessas, continuar com as antigas, mesmo que elas não venham dando certo. Resolvi mergulhar no vórtice inconsciente da minha realidade alienada, como se qualquer outra alternativa significasse a completa abdicação de ter existido algum dia como eu próprio. Percebam que a pouca mudança, não é mais que uma entrega, uma rapisódia maluca, volátil e sensitiva como a fumaça de um cigarro que fumei.