sexta-feira, 30 de março de 2012

Minha primeira vez

Minha primeira vez foi numa cama, a excitação era tamanha que se manifestava fisicamente, o que muito me constrangia. Fui despindo-me, libertando-me de tudo que me prendia ao mundo real, de todas as convenções e adornos do cotidiano e só então, completamente nu, pude me engajar firmemente ao ato, meio que sem saber como e ciente do contraste entre a maturidade de meu companheiro estático e minha completa inexperiência. Deixei-me guiar, fui passivo, juntei-me ao turbilhão sinestésico que enlaçava as duas almas demasiado parecidas. Era algo imenso que me penetrava rasgando toda carne e entranha que encontrava no caminho. Me sentia absolutamente sem rumo, como podia ser possível que aquela enorme angústia que me invadia por trás me trouxesse tanto prazer? Como podia eu na minha fútil e sóbria existência ter me privado por tanto de experimentar tamanha sensação? Já não podia raciocinar e meus gestos resultavam automáticos. Entreguei-me completamente a emoção. Estremeci, agitei, suguei até a última gota de prazer. Engoli tudo como se fosse digesto e ainda por cima diante de tal assombro, explodi em puro gozo. Soube desde o primeiro momento que já não poderia viver mais sem aquilo, sem aquele contexto, aquela parceria. Soube que a partir daí seria obrigado a passar por aquela experiência todos os dias, todas as horas, em todos os lugares, em casa, no ônibus e até mesmo no meio da rua. E assim foi, desde então, há mais ou menos quatro anos, nunca mais pude deixar de ler Fernando Pessoa.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Captação

Capto luzes,
sirenes,
tambores

Decaptam homens,
idéias,
valores

Capitães,
covardes,
desamores,
saudam à
bala,
quem lhes
envia flores

Escutem às súplicas
tempestuosos
aurores,
dos que lhes mostram
sobre fortes dores,
que não é outro
esse tempo,
senão o de
horrores.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Impermeabilidade

Donde vem
o tecido
enigmático
que cobre
violentamente
minh'alma?

Donde nasce
a pele burguesa,
cirurgicamente
implantada sobre
a fraqueza
dessas veias
e tendões?

Donde brota
a barreira
intransponível
que separa
o eu do mundo,
o mundo de mim?

Donde jaz
a inquietação
fúnebre
que eleva o
espírito,
à mais completa
imoderação?

Parte ao acaso
do inferno orgânico,
da mão negra que
afaga o mundo,
da mais alta teoria
da alienação,
ou então,
simplesmente
da tarefa
falha
do convívio
mútuo?

domingo, 25 de março de 2012

Visão

Enxergar
é como perceber
um pequeno
feixe de luz
em meio
as turbulentas
águas
de um mar
infinito.

É sentir
profundamente
a pressão descomunal
que sufoca
e desintegra
cada membrana,
tecido ou célula
do corpo.

É ao mesmo tempo
uma ascensão
e um afogamento,
uma lufada de ar
seguida da enorme
agonia diante
da insuperável
debilidade
humana.

É por fim a morte
de todo referencial,
a eterna preocupação
do exercício,
um pouco como
qualquer outra paixão,
tão necessária
quanto letal.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Alegria

Pensando bem alegria é isso
Calores, sabores, aromas, domingo.

É um paladar instantâneo
que brota na alma
e some na mesma
epifania.

É a onda que arrebata
o espírito em forma de
cena onírica
e se vai.

É a forma que toma
o corpo, asilo, casúlo,
crisálida, vácuo.

É um tal movimento
que transforma
o instante seguinte
em único,agônico,
despreenchido.

"É uma tal Aleluia".

quarta-feira, 21 de março de 2012

Construto

Sou eu então o filho bastardo.
Fruto predileto,
herdeiro somático do impulso
primordial e magnético,
cadeia caóticas de letras "a"
grandes e pequenas,
randomicamente organizadas

Sou eu sim, tu,
tu mesmo, nós, vós, eles,
todos.
Emaranhado humano,
construto social,
multidão indivizível,
produto unitário.
Cem por cento conteúdo latente

Sou eu música,ritmo, harmonia,
sou eu som, clarinete, grunhido,
trepidar.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Fábrica

Piso frio,
algemas de cera,
és tão insólita
acomodada era
que no peito arde
tão longa espera,
mais animal
do que se fosse
fera.

E não há tal chama,
que por mais que tarde,
mostre na luz que
de fato ilumina
e no calor
que de fato arde,
que na alma provoque
algum alarde,
a mesma sombra
de pó, morfina,
que no homem morra
ainda que em parte.