domingo, 22 de abril de 2012

Contágio

Desesperadamente, morria nos olhos do homem de face silente, a esperança promíscua sobre a vida. Mirava atônito a expressão fúnebre da criança que carregava ao colo. As paredes de madeira lodosa comprimiam o ambiente, o ar encharcado, pesado, reforçava-lhe ainda mais a sensação de enjoo flamejante. Parecia descolar-se do tempo, dilatar a matéria, revolvia em rompante a angústia andrajosa que trazia colada ao corpo. Tudo era a contemplação da natureza extática.
Os mesmos olhos, a mesma boca, toda a mesma velha estrutura dominadora dos dias de juventude só que agora infinitamente ruminada pelo deslocar contínuo e irreversível do tempo. Uma enorme gama de conhecimento, apenas para que no limiar recaísse nos assuntos mais triviais do senso comum, no mesmo labirinto popular, sem a vantagem de poder contar com os livros de auto ajuda.
A imagem repugnara-o, desvencilhou-se do quadro à paços tortos, cambaleante prosseguiu esguio por entre a multidão. Vociferava, batia o pé, revolvia-se tentando sem sucesso romper cada uma de suas ligações celulares. Como era possível que uma simples imagem fosse capaz de inverter a ordem da enorme cadeia sucessória dos fatos, trazendo à tona meio século em cinquenta segundos? Dirigiu-se a chapelaria, agarrou sua mala, ajeitou-a nas costas desceu as escadas com pressa.
Deu de cara com a avenida principal. Os carros inertes no tráfego orgânico, seus joelhos doíam, suas costas latejavam e a barba começava a pinicar. Vinte e cinco anos e era velho.Eram seis da tarde e não acontecia nada, mas já não era o mesmo.
Via agora as rugas nas faces dos passantes, livrara-se do barulho insuportável da cidade e já não tinha pressa. Olhava fixamente para o chão, cada passo era um novo desafio, o medo da queda era constante, sempre fora. Nunca em toda sua vida pudera libertar-se dele, nem mesmo por um único segundo. Sempre o mesmo temor primordial que nos persegue, bebês, crianças, jovens, adultos, velhos. É sempre a queda, o grande pavor, a grande angústia que arrebata o homem infinitamente até nos piores pesadelos.
Enxergava o lodo nos prédios, o dia era cinzento, inexplicavelmente belo, e a garoa cobria os homens com seus guarda-chuvas. Atravessou a avenida aos solavancos, apoiando-se em sua bengala invisível. Caminhava disperso, agora já rapidamente, soltara-se de si e procurava alguma coisa que pudesse trazer a própria infância. Um parque, uma bola, um simples carrinho de rolimã.
Não se lembrava do trajeto para casa. Ruas carros e pessoas, todos idênticos. Atravessava cada metro envelhecendo na alternância dos pés, logo não poderia mais se suster e inevitavelmente se chocaria com o asfalto, mas nesse ponto, esquecera até do medo que tinha. A velhice lhe dava tudo, fechou os olhos e tocou o foda-se. Caminhou apressado, sentia o vento e o som da pianola do outro lado da rua que reproduzia Tristão e Isolda, era agora a libertinagem seu presente, sua razão, sua utopia.


Mal pode ouvir a buzina do carro que vinha ao seu encontro, senhor que era de si e do tempo. Sentiu leve o afagar do para-choque contra seu quadril, tropicou, voou, dançou lindamente no ar e se estatelou no meio da rua, não da principal, uma transversal, sem saída nem importância. O gosto férreo do sangue da boca era o veneno, o líquido pastoso que agora o conduzia delirante de volta a sala da pinacoteca.
Estava novamente parado em frente ao quadro. Imóvel, nunca até então havia estado ausente. Sua infância, sua juventude sua velhice. Era fruto e agente do mesmo meio inepto que conduzia cada transeunte. Sempre até então via-se claramente no começo e no fim das coisas, tudo para si era seu, mesmo as coisas mais impessoais, mais exógenas, exóticas, não eram mais do que parte daquilo que chamava de mundo.
Terminou atado a mesma pedra, com os olhos inexoravelmente voltados para frente à contemplar o quadro e a sombra dos passantes que se projetavam na parede sem ser capaz de compartilhar um segundo de sua violenta rapsódia. Desejava gritar, espernear, mas além de mudo, não conhecia nenhuma língua.

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