quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Invólucro

Manhã cinzenta, passos cruzados no asfalto caminham independentes rumo um destino premeditado, o mesmo de ontem de amanhã e de todo o resto da semana. Augusto caminha especialmente apressado e absorto em pensamentos, tentando sistematizar mentalmente as dezenas de tarefas sem a certeza de conseguir almoçar. Os transeuntes passam ao seu lado sem tocá-lo, conhecidos trocam comprimentos sem desperta-lo, seus passos leves e esquivos lhe permitem uma agilidade sobre-humana, são prova de uma perícia inconscientemente desenvolvida. Chega ao escritório e ao sentar –se encara o bilhete amarelo em frente a tela do computador que o lembra de sua primeira tarefa “Ligar para mamãe para saber como ela está”, toma rapidamente o telefone do gancho e em menos de três minutos resolve a questão. Liga o computador, acessa a internet para ver por cima as notícias do dia, comprimidas em micro anúncios que mais desinformam do que outra coisa, abre seu horóscopo, ri sem demora da piada do dia e finalmente parte para suas tarefas profissionais. Perde-se no meio dos papéis. Na hora do almoço sai apressado, vai ao banco, reclama da fila, busca o filho na escola perguntando por obrigação sobre como foi a aula, deixa-o em casa sem tempo para o almoço e corre para o escritório aonde passa o resto da tarde à rasgar papéis e a gritar com a secretária. Nove e meia da noite abandona o trabalho, já três horas atrasado e corre para casa enquanto maquina seu dia de amanhã, acelera o passo e ao virar na esquina colide frontalmente com um velho que vinha do outro lado. Caído tenta aos trancos recobrar a consciência e ao conseguir se depara com uma figura pequena, excessivamente magra e um tanto degradada pelo tempo que jaz em sua frente absolutamente estatelada. Quem seria ? O que haveria impedido seus passos de prosseguir com sua trajetória mecânica? Assustado Augusto observa aquela figura estranha com dois olhos, duas pernas e uma boca, enquanto ela se levanta com dificuldade soltando alguns insultos. O homem se arruma, recolhe seu chapéu do chão e parte, deixando Augusto inerte na beira da calçada. Que rua era aquela? Como chegaria em casa? Levantou-se mais calmo e aos poucos foi descobrindo o ambiente, sentiu o cheiro do asfalto recentemente molhado pela chuva, recolheu do chão sua pasta que agora parecia pesar uma tonelada e sentiu as costas doerem, talvez da queda, ou então do peso que carregava diariamente . Foi descobrindo rua por rua o caminho do lar e ao chegar olhou para a esposa adormecida no sofá, preparou um chá e se sentou em sua poltrona meditando um pouco pela primeira vez em meses. Olhou a casa, o carro estacionado na garagem, a esposa e o filho dormentes, perambulou pela casa por toda a madrugada. Sentou-se em frente a janela, o sol nascia do lado de fora, com ele novamente os problemas voltavam a o assaltá-lo, olhou atento uma última vez para os primeiros raios que cruzavam as folhas do pessegueiro instalado em frente a sua casa sentiu vergonha do invólucro que se tornara.

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